quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Sobre o Liberalismo



Nas últimas décadas do século XVIII ocorreram grandes transformações no mundo ocidental. Filósofos e cientistas propunham novas maneiras de "olhar" o mundo, e de se relacionar com ele. A concepção de uma sociedade estática e estratificada, na qual o homem já encontrava o seu destino traçado ia sendo transformada. O homem passava a ser o construtor de seu tempo, de sua história. A Revolução Industrial Inglesa, a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa foram os marcos dessa modernidade. Na Europa ocidental, o novo pensamento liberal impulsionou a queda dos regimes absolutistas levando, para suas colônias, o rastilho da Independência.
O século XIX marcou, na Europa, o momento de afirmação e consolidação das diferentes ideologias políticas forjadas a partir da segunda metade do século XVIII. Se este é em geral caracterizado como o Século das Luzes, do qual brotaram tanto os ideais políticos e sociais associados à Revolução Francesa quanto os avanços científicos e econômicos decorrentes da Revolução Industrial, o período seguinte testemunharia os resultados desse processo, seja no que diz respeito às profundas contradições sociais dele decorrentes, seja quanto ao amadurecimento de ideias e perspectivas que tratavam de analisar e explicar o novo mundo formado a partir de então. 
Uma dentre tais ideologias, no entanto, alcançou tamanha supremacia sobre as demais que acabou por transformar-se na marca principal do novo tempo: o liberalismo, que definiu um sentido muito preciso para a ânsia por liberdade, constituída desde o século anterior. O século XIX pode ser por isto definido como o momento de hegemonia do liberalismo, como bem destacou Rémond:

O liberalismo é um dos grandes fatos do século XIX, século que ele domina por inteiro e não apenas no período onde todos os movimentos alardeiam explicitamente a filosofia liberal. [...] Trata-se, portanto, de um fenômeno histórico de grande importância, que dá ao século XIX parte de sua cor e que muito contribuiu para sua grandeza, porque o século XIX é um grande século, a despeito das lendas e do julgamento que se costuma fazer de suas ideologias (RÉMOND, 1976, p. 25).


Assim sendo, a constituição dessa hegemonia não se deu, porém, de forma imediata.  Ela foi o resultado de muitas décadas de avanço da ideia liberal pelo continente. Sem se reduzir aos princípios definidos pelo ideário iluminista do século XVIII, o liberalismo conseguiu se firmar por meio de uma expansão que se deu tanto no tempo quanto no espaço, não só na Europa como também pelo resto do mundo. Algumas vezes essa progressão ocorreu de forma pacífica, por intermédio de reformas. Na maior parte dos casos, entretanto, tal mudança tomou a forma das insurreições ou das revoluções.
A história do liberalismo abrange a maior parte dos últimos quatro séculos, começando na Guerra Civil Inglesa e continua após o fim da Guerra Fria. O liberalismo começou como uma doutrina principal e esforço intelectual em resposta as guerras religiosas, segurando a Europa durante os séculos XVI e XVII, embora o contexto histórico para a ascensão do liberalismo remonta a Idade Média. A primeira encarnação notável da agitação liberal veio com a Revolução Americana, e do liberalismo plenamente explodiu como um movimento global contra a velha ordem durante a Revolução Francesa, que marcou o ritmo para o futuro desenvolvimento da história humana. Liberais clássicos, que em geral destacaram a importância do livre mercado e as liberdades civis, dominaram a história liberal no século após a Revolução Francesa. O início da Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão, porém, aceleraram a tendência iniciada no final do século XIX na Grã-Bretanha para um novo liberalismo que enfatizou um maior papel para o Estado melhorar as condições sociais devastadoras. No início do século XXI, as democracias liberais e as suas características fundamentais de direitos civis, liberdades individuais, sociedades pluralistas e o estado de bem-estar haviam prevalecido na maioria das regiões do mundo. O liberalismo defendia a descentralização política.
Nesse sentido, partindo da orientação do próprio autor, cumpre avançar nas discussões acerca do movimento liberal destacando as duas distintas, porém complementares abordagens desse fenômeno: uma de cunho ideológico assentado nas ideias e a outra de cunho sociológico, que considera as camadas sociais.
O caminho assumido pela ideologia liberal é mais intelectual, privilegia as ideias, examina os princípios e estuda os programas. É a interpretação do liberalismo proposta pelos próprios liberais, enquanto filosofia global que evita o reducionismo do mesmo ao seu aspecto econômico e que julga ter respostas para todos os problemas colocados pela existência coletiva. Do mesmo modo, o aponta também como uma filosofia política inteiramente orientada para a ideia de liberdade, de acordo com a qual a sociedade política deve basear-se na liberdade e encontrar sua justificativa na consagração da mesma. Trata-se também de uma filosofia social individualista, na medida em que coloca o indivíduo à frente da razão de Estado, dos interesses de grupo, das exigências da coletividade, não reconhecendo sequer os grupos sociais, apresenta grande dificuldade em aceitar a liberdade de associação, temendo que o indivíduo fosse absorvido, escravizado pelos grupos. Trata-se ainda de uma filosofia da história, de acordo com a qual a história é feita, não pelas forças coletivas, mas pelos indivíduos. Por último, merece o nome de filosofia, pois advoga a busca pelo conhecimento e pela verdade. Em reação contra o método da autoridade, o liberalismo acredita na descoberta progressiva da verdade pela razão individual.
Contudo, podem-se entrever as consequências jurídicas e políticas que essa filosofia do conhecimento implica: a rejeição sem reserva do poder absoluto quer sejam de autoridades intelectuais, espirituais, Igrejas, religiões de Estado, dogmas impostos pelas Igrejas, a descentralização do poder, a afirmação do relativismo da verdade, a tolerância.
As manifestações que tiveram por cunho a filosofia liberal, opositora a todo tipo de poder absoluto, inspirava novas revoluções em homens que sacrificavam a própria vida pela ideia liberal. Daí o autor, ao fazer um balanço dessas consequências e de suas aplicações, numa abordagem ideológica, qualifica o liberalismo como sendo uma doutrina subversiva, progressista e revolucionária.
Para, além disso, completamente diversa é a visão que se obtém com uma abordagem sociológica, que, em lugar de examinar os princípios, considera os atores e as forças sociais. Essa abordagem sugere que o liberalismo é, pelo menos enquanto filosofia, a expressão de um grupo social, a doutrina que melhor serve aos interesses de uma classe, isto é o liberalismo enquanto expressão dos interesses da burguesia. É muito íntima a concordância entre as aplicações da doutrina liberal e os interesses vitais da burguesia. A burguesia fez a Revolução e a Revolução entregou-lhe o poder; ela pretende conservá-lo, contra a volta de uma aristocracia e contra a ascensão das camadas populares.
Em outras palavras, equivale a dizer que o liberalismo, forjado na luta contra o Anti­go Regime, teve força revolucionária e empolgou homens comuns, oprimidos pelos nobres e pelos reis absolutistas. Porém, na prática, ele serviu principalmente aos interesses da burguesia. Quando o Antigo Regime desmoronou, a velha nobreza foi substituída no poder pela burguesia. Uma vez no poder, a burguesia trocou o espírito revolucionário pelo conservadorismo.
Assim, a abordagem sociológica tem o grande mérito de lembrar, ao lado de uma visão idealizada, a existência de aspectos importantes da realidade, que mostra o avesso do liberalismo e revela que ele é também uma doutrina de conservação política e social.
Essa abordagem mostra o avesso do liberalismo e revela que ele é também uma doutrina de conservação política, e, portanto, uma doutrina ambígua, que combate alternativamente dois adversários, o passado e o futuro, o Antigo Regime e a futura democracia.
Posto dessa forma, o autor salienta, no entanto, que o liberalismo não se reduz à expressão de uma classe, da burguesia endinheirada. De outro modo seria exagero concluir que ela só tenha adotado o liberalismo em função de seus interesses, ela também pode tê-lo feito por convicção e, em parte por generosidade. Sendo, portanto, um falso dilema contrapor princípios e interesses. O autor coloca que eles podem caminhar no mesmo sentido sem que, por isso, os interesses sufoquem os princípios. E que, se queremos compreender e apreciar o liberalismo, não temos que escolher entre as duas interpretações, não temos que optar entre o aspecto ideológico e a abordagem sociológica, mesmo porque ambos concorrem para definir a originalidade do liberalismo e para revelar o que constitui um de seus traços essenciais, essa ambiguidade que faz com que o liberalismo tenha podido ser, alternativamente, revolucionário e conservador, subversivo e conformista.
Daí podermos apontar os princípios básicos do liberalismo, voltados à defesa da propriedade privada; à liberdade econômica, isto é, o livre mercado; a mínima participação do Estado nos assuntos econômicos da nação, sendo, portanto, um governo limitado; e por último, a igualdade perante a lei, o seria o estado de direito.
Sendo assim, o Liberalismo parte do princípio de que o homem nasce livre, tem a propriedade dos bens que extrai da natureza ou adquire por via de seu mérito ou diligência e, quando plenamente maduro e consciente, pode fazer sua liberdade prevalecer sobre as reações primárias do próprio instinto e orientar sua vontade para a virtude. Uma pessoa madura e livre está à altura de perseguir sua felicidade a seu modo, porém respeitada uma escala de valores discutida e aprovada por todos, ou seja, ela deve reconhecer sua responsabilidade em relação ao seu próprio destino e ao objetivo da felicidade coletiva em sua comunidade ou nação. Será contraditório que alguém ou algum grupo tenha naturalmente poderes para cercear essa liberdade sem que parta do próprio indivíduo uma concordância para tal.
A compreensão que se tem é de que o liberalismo como corpo de ideias que justificam a sociedade burguesa, pauta-se em princípios que são condição para o seu nascimento e estabelecimento. Estes princípios não tomam corpo num mesmo período e nem são anunciados pelas mesmas vozes ou interlocutores.
Quando se fala de liberalismo poucas dúvidas surgem em torno daquilo que o termo quer designar. Liberalismo é um conceito amplo que faz referência a um corpo doutrinário com diversas ramificações, dotado, contudo, de um núcleo comum muito bem definido: a ideia de liberdade individual como fundamento da ordem. O liberalismo econômico caracteriza argumentos, políticas, ou teorias que defendem o livre empreendimento, a busca individual pelo bem-estar material como a melhor maneira de se atingir o desiderato coletivo de desenvolvimento econômico e ampliação da riqueza agregada. O liberalismo político se apoia nas ideias de livre expressão de opiniões e de livre organização para a defesa e veiculação de tais opiniões.
Nessa perspectiva, o texto nos leva a percepção da dificuldade de se precisar consensualmente o conceito de Liberalismo, e para tanto, destacamos três razões, partindo do que preceitua BOBBIO (2000), “a história do liberalismo acha-se intimamente vinculada à história da democracia”, a tal ponto, que é difícil separar “o que existe de democrático e o que existe de liberal nas atuais democracias liberais”, porque, de fato, segundo a teoria política, o liberalismo é o critério que distingue as democracias liberais das suas outras formas não liberais (populista, plebiscitária, totalitária); o liberalismo manifesta-se em tempos e espaços bastante diversos, o que dificulta a possibilidade de situá-lo num plano sincrônico e pontuar “o momento liberal capaz de unificar histórias diferentes”; e, por fim, não obstante o modelo liberal inglês ter-se sobressaído em relação ao modelo derivado da Revolução Francesa, não podemos falar de uma “história-difusão” do Liberalismo, em razão das especificidades estruturais, culturais e sociais com as quais o Liberalismo deparou-se em cada sociedade.
Ao fazer o balanço dos resultados desses movimentos liberais que deixaram suas marcas nas instituições políticas e na ordem social, Rémond destaca as características da ordem política inspirada no liberalismo e os caracteres constitutivos das sociedades impregnadas por essa filosofia. Assim, ele coloca que, na maioria dos países, o progresso do liberalismo é medido pela adoção de instituições cuja reunião define o regime liberal típico, reconhecido, primeiramente pela existência de uma constituição e em segundo lugar, essas constituições tendem a limitar o poder. Posto isso, ele afirma que o liberalismo define-se por sua oposição à noção de absolutismo.
Conclui-se, deste modo, que para que esta nova ordem pudesse realmente existir enquanto modelo societário tornavam-se necessárias a libertação dos indivíduos dos laços religiosos, a implementação de um Estado que interferisse o mínimo possível nas leis naturais de oferta e procura e, principalmente, que protegesse a propriedade por leis e, por fim, a aceitação da maioria dos homens de que, embora livres e iguais, o acesso à riqueza era limitado para um pequeno grupo. Estas mudanças foram justificadas pela doutrina liberal e sustentadas pelos diferentes teóricos que defenderam esta acepção. 


REFERÊNCIA:


BOBBIO, Noberto. Dicionário de política. Brasília, Ed. UNB, 5ª ed., 2000.

RÉMOND, René. O Século XIX (1815-1914). “A Idade do Liberalismo”. Capítulo 2. São Paulo: Cultrix, 1976