Nas últimas décadas do
século XVIII ocorreram grandes transformações no mundo ocidental. Filósofos e
cientistas propunham novas maneiras de "olhar" o mundo, e de se
relacionar com ele. A concepção de uma sociedade estática e estratificada, na
qual o homem já encontrava o seu destino traçado ia sendo transformada. O homem
passava a ser o construtor de seu tempo, de sua história. A Revolução
Industrial Inglesa, a Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa foram
os marcos dessa modernidade. Na Europa ocidental, o novo pensamento liberal
impulsionou a queda dos regimes absolutistas levando, para suas colônias, o
rastilho da Independência.
O século XIX marcou, na
Europa, o momento de afirmação e consolidação das diferentes ideologias
políticas forjadas a partir da segunda metade do século XVIII. Se este é em
geral caracterizado como o Século das Luzes, do qual brotaram tanto os ideais
políticos e sociais associados à Revolução Francesa quanto os avanços científicos
e econômicos decorrentes da Revolução Industrial, o período seguinte
testemunharia os resultados desse processo, seja no que diz respeito às
profundas contradições sociais dele decorrentes, seja quanto ao amadurecimento
de ideias e perspectivas que tratavam de analisar e explicar o novo mundo
formado a partir de então.
Uma dentre tais
ideologias, no entanto, alcançou tamanha supremacia sobre as demais que acabou
por transformar-se na marca principal do novo tempo: o liberalismo, que definiu
um sentido muito preciso para a ânsia por liberdade, constituída desde o século
anterior. O século XIX pode ser por isto definido como o momento de hegemonia
do liberalismo, como bem destacou Rémond:
O liberalismo é um
dos grandes fatos do século XIX, século que ele domina por inteiro e não apenas
no período onde todos os movimentos alardeiam explicitamente a filosofia
liberal. [...] Trata-se, portanto, de um fenômeno histórico de grande
importância, que dá ao século XIX parte de sua cor e que muito contribuiu para
sua grandeza, porque o século XIX é um grande século, a despeito das lendas e
do julgamento que se costuma fazer de suas ideologias (RÉMOND, 1976, p. 25).
Assim sendo, a
constituição dessa hegemonia não se deu, porém, de forma imediata. Ela foi o resultado de muitas décadas de
avanço da ideia liberal pelo continente. Sem se reduzir aos princípios
definidos pelo ideário iluminista do século XVIII, o liberalismo conseguiu se
firmar por meio de uma expansão que se deu tanto no tempo quanto no espaço, não
só na Europa como também pelo resto do mundo. Algumas vezes essa progressão
ocorreu de forma pacífica, por intermédio de reformas. Na maior parte dos
casos, entretanto, tal mudança tomou a forma das insurreições ou das
revoluções.
A história do liberalismo
abrange a maior parte dos últimos quatro séculos, começando na Guerra Civil
Inglesa e continua após o fim da Guerra Fria. O liberalismo começou como uma
doutrina principal e esforço intelectual em resposta as guerras religiosas,
segurando a Europa durante os séculos XVI e XVII, embora o contexto histórico
para a ascensão do liberalismo remonta a Idade Média. A primeira encarnação
notável da agitação liberal veio com a Revolução Americana, e do liberalismo
plenamente explodiu como um movimento global contra a velha ordem durante a
Revolução Francesa, que marcou o ritmo para o futuro desenvolvimento da
história humana. Liberais clássicos, que em geral destacaram a importância do
livre mercado e as liberdades civis, dominaram a história liberal no século
após a Revolução Francesa. O início da Primeira Guerra Mundial e a Grande
Depressão, porém, aceleraram a tendência iniciada no final do século XIX na
Grã-Bretanha para um novo liberalismo que enfatizou um maior papel para o
Estado melhorar as condições sociais devastadoras. No início do século XXI, as
democracias liberais e as suas características fundamentais de direitos civis,
liberdades individuais, sociedades pluralistas e o estado de bem-estar haviam
prevalecido na maioria das regiões do mundo. O liberalismo defendia a
descentralização política.
Nesse sentido, partindo da
orientação do próprio autor, cumpre avançar nas discussões acerca do movimento
liberal destacando as duas distintas, porém complementares abordagens desse
fenômeno: uma de cunho ideológico assentado nas ideias e a outra de cunho
sociológico, que considera as camadas sociais.
O caminho assumido pela
ideologia liberal é mais intelectual, privilegia as ideias, examina os
princípios e estuda os programas. É a interpretação do liberalismo proposta pelos
próprios liberais, enquanto filosofia global que evita o reducionismo do mesmo
ao seu aspecto econômico e que julga ter respostas para todos os problemas
colocados pela existência coletiva. Do mesmo modo, o aponta também como uma
filosofia política inteiramente orientada para a ideia de liberdade, de acordo
com a qual a sociedade política deve basear-se na liberdade e encontrar sua
justificativa na consagração da mesma. Trata-se também de uma filosofia social
individualista, na medida em que coloca o indivíduo à frente da razão de
Estado, dos interesses de grupo, das exigências da coletividade, não
reconhecendo sequer os grupos sociais, apresenta grande dificuldade em aceitar
a liberdade de associação, temendo que o indivíduo fosse absorvido, escravizado
pelos grupos. Trata-se ainda de uma filosofia da história, de acordo com a qual
a história é feita, não pelas forças coletivas, mas pelos indivíduos. Por
último, merece o nome de filosofia, pois advoga a busca pelo conhecimento e
pela verdade. Em reação contra o método da autoridade, o liberalismo acredita
na descoberta progressiva da verdade pela razão individual.
Contudo, podem-se entrever as consequências jurídicas e políticas que essa filosofia do
conhecimento implica: a rejeição sem reserva do poder absoluto
quer sejam de autoridades intelectuais, espirituais, Igrejas, religiões de
Estado, dogmas impostos pelas Igrejas, a descentralização do poder, a afirmação
do relativismo da verdade, a tolerância.
As manifestações que
tiveram por cunho a filosofia liberal, opositora a todo tipo de poder absoluto,
inspirava novas revoluções em homens que sacrificavam a própria vida pela ideia
liberal. Daí o autor, ao fazer um balanço dessas consequências e de suas
aplicações, numa abordagem ideológica, qualifica o liberalismo como sendo uma
doutrina subversiva, progressista e revolucionária.
Para, além disso,
completamente diversa é a visão que se obtém com uma abordagem sociológica,
que, em lugar de examinar os princípios, considera os atores e as forças
sociais. Essa abordagem sugere que o liberalismo é,
pelo menos enquanto filosofia, a expressão de um grupo social, a doutrina que
melhor serve aos interesses de uma classe, isto é o liberalismo enquanto
expressão dos interesses da burguesia. É muito íntima a concordância entre as
aplicações da doutrina liberal e os interesses vitais da burguesia. A burguesia
fez a Revolução e a Revolução entregou-lhe o poder; ela pretende conservá-lo,
contra a volta de uma aristocracia e contra a ascensão das camadas populares.
Em outras palavras,
equivale a dizer que o liberalismo, forjado na luta contra o Antigo Regime,
teve força revolucionária e empolgou homens comuns, oprimidos pelos nobres e
pelos reis absolutistas. Porém, na prática, ele serviu principalmente aos
interesses da burguesia. Quando o Antigo Regime desmoronou, a velha nobreza foi
substituída no poder pela burguesia. Uma vez no poder, a burguesia trocou o
espírito revolucionário pelo conservadorismo.
Assim, a abordagem
sociológica tem o grande mérito de lembrar, ao lado de uma visão idealizada, a
existência de aspectos importantes da realidade, que mostra o avesso do liberalismo e
revela que ele é também uma doutrina de conservação política e social.
Essa abordagem mostra o
avesso do liberalismo e revela que ele é também uma doutrina de conservação
política, e, portanto, uma doutrina ambígua, que combate alternativamente dois
adversários, o passado e o futuro, o Antigo Regime e a futura democracia.
Posto dessa forma, o autor
salienta, no entanto, que o liberalismo não se reduz à expressão de uma classe,
da burguesia endinheirada. De outro modo seria exagero concluir que ela só
tenha adotado o liberalismo em função de seus interesses, ela também pode tê-lo
feito por convicção e, em parte por generosidade. Sendo, portanto, um falso
dilema contrapor princípios e interesses. O autor coloca que eles podem
caminhar no mesmo sentido sem que, por isso, os interesses sufoquem os
princípios. E que, se queremos compreender e apreciar o liberalismo, não temos
que escolher entre as duas interpretações, não temos que optar entre o aspecto
ideológico e a abordagem sociológica, mesmo porque ambos concorrem para definir
a originalidade do liberalismo e para revelar o que constitui um de seus traços
essenciais, essa ambiguidade que faz com que o liberalismo tenha podido ser,
alternativamente, revolucionário e conservador, subversivo e conformista.
Daí podermos apontar os princípios básicos do liberalismo, voltados à
defesa da propriedade privada; à liberdade econômica, isto é, o livre mercado;
a mínima participação do Estado nos assuntos econômicos da nação, sendo,
portanto, um governo limitado; e por último, a igualdade perante a lei, o seria
o estado de direito.
Sendo assim, o Liberalismo
parte do princípio de que o homem nasce livre, tem a propriedade dos bens que
extrai da natureza ou adquire por via de seu mérito ou diligência e, quando
plenamente maduro e consciente, pode fazer sua liberdade prevalecer sobre as
reações primárias do próprio instinto e orientar sua vontade para a virtude.
Uma pessoa madura e livre está à altura de perseguir sua felicidade a seu modo,
porém respeitada uma escala de valores discutida e aprovada por todos, ou seja,
ela deve reconhecer sua responsabilidade em relação ao seu próprio destino e ao
objetivo da felicidade coletiva em sua comunidade ou nação. Será contraditório
que alguém ou algum grupo tenha naturalmente poderes para cercear essa
liberdade sem que parta do próprio indivíduo uma concordância para tal.
A compreensão que se tem é
de que o liberalismo como corpo de ideias que justificam a sociedade burguesa,
pauta-se em princípios que são condição para o seu nascimento e
estabelecimento. Estes princípios não tomam corpo num mesmo período e nem são
anunciados pelas mesmas vozes ou interlocutores.
Quando se fala de
liberalismo poucas dúvidas surgem em torno daquilo que o termo quer designar.
Liberalismo é um conceito amplo que faz referência a um corpo doutrinário com
diversas ramificações, dotado, contudo, de um núcleo comum muito bem definido:
a ideia de liberdade individual como fundamento da ordem. O liberalismo
econômico caracteriza argumentos, políticas, ou teorias que defendem o livre
empreendimento, a busca individual pelo bem-estar material como a melhor
maneira de se atingir o desiderato coletivo de desenvolvimento econômico e
ampliação da riqueza agregada. O liberalismo político se apoia nas ideias de
livre expressão de opiniões e de livre organização para a defesa e veiculação
de tais opiniões.
Nessa perspectiva, o texto
nos leva a percepção da dificuldade de se precisar consensualmente o conceito
de Liberalismo, e para tanto, destacamos três razões, partindo do que preceitua
BOBBIO (2000), “a história do liberalismo acha-se intimamente vinculada à
história da democracia”, a tal ponto, que é difícil separar “o que existe de
democrático e o que existe de liberal nas atuais democracias liberais”, porque,
de fato, segundo a teoria política, o liberalismo é o critério que distingue as
democracias liberais das suas outras formas não liberais (populista,
plebiscitária, totalitária); o liberalismo manifesta-se em tempos e espaços
bastante diversos, o que dificulta a possibilidade de situá-lo num plano
sincrônico e pontuar “o momento liberal capaz de unificar histórias
diferentes”; e, por fim, não obstante o modelo liberal inglês ter-se
sobressaído em relação ao modelo derivado da Revolução Francesa, não podemos
falar de uma “história-difusão” do Liberalismo, em razão das especificidades
estruturais, culturais e sociais com as quais o Liberalismo deparou-se em cada
sociedade.
Ao fazer o balanço dos
resultados desses movimentos liberais que deixaram suas marcas nas instituições
políticas e na ordem social, Rémond destaca as características da ordem
política inspirada no liberalismo e os caracteres constitutivos das sociedades
impregnadas por essa filosofia. Assim, ele coloca que, na maioria dos países, o
progresso do liberalismo é medido pela adoção de instituições cuja reunião
define o regime liberal típico, reconhecido, primeiramente pela existência de
uma constituição e em segundo lugar, essas constituições tendem a limitar o
poder. Posto isso, ele afirma que o liberalismo define-se por sua oposição à
noção de absolutismo.
Conclui-se, deste modo,
que para que esta nova ordem pudesse realmente existir enquanto modelo
societário tornavam-se necessárias a libertação dos indivíduos dos laços
religiosos, a implementação de um Estado que interferisse o mínimo possível nas
leis naturais de oferta e procura e, principalmente, que protegesse a
propriedade por leis e, por fim, a aceitação da maioria dos homens de que,
embora livres e iguais, o acesso à riqueza era limitado para um pequeno grupo.
Estas mudanças foram justificadas pela doutrina liberal e sustentadas pelos
diferentes teóricos que defenderam esta acepção.
REFERÊNCIA:
BOBBIO,
Noberto. Dicionário de política.
Brasília, Ed. UNB, 5ª ed., 2000.