sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A FIXAÇÃO DOS GERMÂNICOS NO IMPÉRIO ROMANO E A ORGANIZAÇÃO DOS SEUS REINOS NA EUROPA A PARTIR DO SÉCULO V


Por Edilma Oliveira de Sousa


Para melhor compreendermos a fixação dos germânicos no Império Romano, bem como a organização dos seus reinos na Europa a partir do século V, faz-se necessário estabelecermos um plano de estudo que parte das seguintes questões: Quem são os povos germânicos? De onde vieram? Quais são as características gerais desses povos? E, finalmente, como se deu a fixação dos germânicos no Império Romano e a organização dos seus reinos?
É senso comum denominarmos não só os germanos, mas outros grupos que margearam o Império romano de bárbaros. Como bem destacou Riché.

Para um habitante do mundo romano, o Bárbaro é um homem que fala uma linguagem incompreensível e cuja civilização é ainda primitiva. [...] Todos aqueles que Roma teve de conter sem poder absorvê-los, constituem os “Bárbaros” e ameaçam mais ou menos o mundo civilizado (RICHÉ, 1992, p. 13).

Observamos então, que os romanos adotaram tal concepção, considerando “bárbaros” aqueles povos que estavam fora das suas fronteiras, estrangeiros não assimilados, e que tinham uma cultura considerada inferior à romana. Este sentido pejorativo do termo encontrou eco plenamente no período renascentista, a partir do século XV, quando surge o conceito de Idade Média como idade das trevas. Era corrente a idéia de que os “bárbaros” haviam destruído a civilização greco-romana com toda a sua rudeza e inferioridade cultural, intelectual, etc. 

Mas quem eram, na verdade, esses “bárbaros”? No século I a.C., o grego Posidônio publicava um relato de viagem no qual classificava como germanos o conjunto de povos instalados entre os rios Reno e Vístula, e, por conseguinte, batizava esta região de Germânia. Riché, considerando as informações de Tácito, dá-nos conta de que “os germanos que invadem o Império já não estavam divididos como no século I, em função de perturbações sociais, guerras entre tribos, múltiplas deslocações que transformaram o mapa da Germânia”. Dessa forma, o historiador destaca a divisão dos germânicos em três grupos, conforme estes se apresentavam nas vésperas das invasões:

No leste, os godos, vindos do Báltico, na Ucrânia, no século III, repartem-se em visigodos (godos "sá­bios"), a oeste do Dnieper, e em ostrogodos (godos "brilhan­tes"), a leste do mesmo rio. Há ainda os gépidos, que descem do Báltico e se instalam sobre a Thiza, não longe dos vânda­los hasdings. Os vândalos silings, por sua vez, ocupam a Silé­sia e comprimem os marcomanos na Baviera. Os burgundios, originários talvez da ilha báltica de Bornholm (borghundar­holm), empurrados pelos gépidos, encaminham-se do Oder em direção ao Reno. No outro grupo, a oeste, estão os alama­nos, congregando diversos povos (ali mann), que se estabele­cem sobre o Main. Os francos absorvem os sicambrios, chamavos, bructeros, chattos etc. e dividem-se em dois seg­mentos: ripuários, sobre a margem do Rena, de Bonn a Co­lônia, e sálios, entre o Reno e o Escalda. O último grupo, localizado ao norte, seria o dos escandinavos, anglos, varnes e jutos. Entre a foz do Elba e do Weser, instalam-se os saxões e frísios, e, mais a leste, entre o Elba e o Oder, os lombardos (RICHÉ, 1992, p. 14-15).



No que se refere à questão de “onde vieram esses povos?”, observamos que a origem dos germanos é incerta. Alguns estudiosos alemães acreditam que os germanos sejam indo-europeus vindos da Rússia oriental; ou­tros os consideram como nórdicos que ocupavam as regiões escandinavas e bálticas e estavam isolados pela floresta ger­mânica; na Idade do Bronze, estes povos receberam o apor­te de outros povos, dos quais adotaram a língua indo-européia. A civilização germânica estaria influenciada pelos celtas e ilírios, e até pelos povos mediterrâneos. Esta hipótese é a mais aceitável pela historiografia. A última foi formulada por Tácito, que os vê como autóctones, isto é, como a seres vivos originários do próprio território onde habitam. Foi a partir da obra do romano Tácito, “Germânia”, publicada no século I, que pudemos melhor conhecer as características gerais desses grupos:

Creio que os germanos são naturais da própria terra e que jamais se mesclaram com a vinda e hospedagem de outros povos; pois, antigamente, todos que emigravam não iam por terra senão por mar e são raros os navios que de nosso mundo se aventuram a penetrar no Oceano imenso e, por assim dizer, oposto ao nosso. Ainda sem o perigo e o horror de um mar desconhecido, quem abandonaria a Ásia, África ou Itália para dirigir-se a essa Germânia áspera, de clima duro e de aspecto tão ingrato, não sendo para seus naturais? (TÁCITO, 1946, p. 9).

Quais são, então, as características gerais desses povos? Os germanos não tinham noção de Estado organizado nem de vida urbana, como os romanos. Eram povos seminômades, cuja base social e política se estruturava nas comunidades: tribo, clã e família, como sinalizam Riché,

É, na verdade, no seio da sua tribo que se tem de observar a vida do Germano, pois é com a família a estrutura social essencial. A tribo, comunidade de família e da aldeia, é dirigida por uma aristocracia de nascimento ou de valor, que possui a maior parte da terra. Na base, a multidão dos homens livres, portadores de armas e que exprimem por aclamação a sua opinião nas assembléias; depois vem, na classe mais inferior, os escravos, prisioneiros de guerras ou devedores de insolventes, ligados à cultura do solo, mas que, sendo resgatados, podem passar à classe de homens livres. No entanto, não poderão fazer parte do povo germânico, pois só a ligação com a família dá ao Germano a possibilidade de ser livre (RICHÉ, 1992, p. 15-16).
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Eram sociedades militares por excelência, vivendo da pilhagem e da guerra, como vemos ao longo dos estudos em Tácito. Dentro das tribos havia um comitatus, ou seja, um grupo de guerreiros liderados por um chefe mais velho, sábio e experiente, a quem todos deviam fidelidade absoluta. O direito era consuetudinário, ou seja, baseava-se nos costumes. A sociedade era patriarcal, o casamento monogâmico e o adultério severamente punido. Viviam da agricultura, pecuária, sem propriedade privada, e sim comunal, distribuída entre as famílias. Esgotada a produtividade das terras, iam sempre à busca de novos locais para se instalar. Do ponto de vista político, essas tribos eram dirigidas por uma Assembléia de Guerreiros. O indivíduo de maior prestígio social entre os germânicos era o guerreiro, quase sempre o líder do clã.

Os germânicos desenvolveram a metalurgia para a fabricação de armas e carros de combate. Sua cultura refletia os hábitos militares e clânicos das tribos. A religião germânica estava vinculada ao clã – em geral eram politeístas e cultuavam os seus ancestrais. A literatura, ainda oral, fundamentalmente canções e poemas, cantava os feitos dos heróis nos combates. É interessante ressaltar que cada tribo cultuava o seu próprio herói, real ou mitológico, sempre enaltecido nas festas e rituais. Eles desconheciam qualquer forma de unidade religiosa e não possuíam templos: normalmente, os ritos se realizavam ao ar livre, nos bosques, nas florestas e nos montes.
Quanto à questão primordial deste trabalho, “como se deu a fixação dos germânicos no Império Romano?”, estudos apontam que os primeiros contatos entre romanos e germanos se deram ainda no século I a.C, nas fronteiras do Império, por meio de pequenas incursões isoladas: por falta de terras, obrigações rituais de jovens que tinham de buscar fortuna fora dos seus limites territoriais. Muitos desses povos migraram para o Império Romano e chegaram a ser utilizados no exército como mercenários.
Quando Roma finalizou seu processo de conquista no século I, a prioridade do Império foi organizar e defender as fronteiras, ou limes, construindo pequenos fortes em intervalos regulares. Atrás das fortalezas, nos acampamentos dos soldados, alguns grupos começaram a levar produtos para serem trocados: âmbar, trigo, peles etc. É também neste momento, em que Roma parte para uma política defensiva, que os germanos começam a penetrar nas legiões romanas: num primeiro momento, recrutados nas fronteiras, em pequeno número e por certo período de tempo; depois por intermédio de tratados estabelecidos com os chefes, com um caráter permanente; e por fim a entrada nas tropas se generalizou, chegando alguns a ocupar altos postos no exército romano.

A partir do século III e no IV, já em meio à crise, a política de defesa do território romano complicou-se bastante, ficando as fronteiras bem vulneráveis. Os povos germanos foram gradativamente atraídos pela disponibilidade de terras férteis e pelo clima ameno das possessões romanas. A entrada dos bárbaros germânicos em Roma nessa fase é denominada por alguns autores de “pacífica”, visto que foi motivada pela procura, por parte dos germânicos, de terras agricultáveis e oportunidades econômicas no interior do próspero Império. Aos poucos, essas migrações foram sendo absorvidas e, até mesmo, nos exércitos e legiões de Roma havia soldados e oficiais germânicos – nessa fase os germanos passaram a ser tratados como povos aliados ou federados, e, sua duração chega até o século IV.

A principio, conforme as circunstâncias e os homens, dispunham-se a acolher os povos que se apinhavam à porta, e mediante o estatuto de federados, respeitavam-lhe as leis, os costumes e a originalidade; desse modo lhes moderavam a agressividade e faziam deles, em seu proveito, soldados e camponeses – minorando a crise de mão-de-obra militar e rural LE GOFF, 1995, p. 31).


Ocorreria, no entanto, uma segunda fase. Paralelamente, essas populações também sofriam com a pressão militar exercida pelos hunos, habilidosos guerreiros mongóis que forçavam a entrada dos germânicos no Império Romano, como mostra Le Goff.

Os invasores eram fugitivos pressionados por outros, mais fortes ou mais cruéis que eles. A sua crueldade era muitas vezes a crueldade do desespero, em especial quando os Romanos lhes recusavam o abrigo que eles tantas vezes pacificamente lhes pediam (LE GOFF, 1995, p. 31).

O aparecimento dos hunos na planície russa exerceu uma forte pressão sobre os germanos, fazendo-os penetrar em massa no Ocidente. Vindos da Mongólia, os hunos eram nômades, vivendo da caça, pastoreio e pilhagem. Grandes cavaleiros, guerreiros por excelência, tinham um estágio civilizatório mínimo, quase neolítico, sendo sua maneira de viver chocante para o Império.
Roma, preocupada com essa maciça presença germânica, tentou barrá-la. Contudo, já decadente pela crise interna, não teve condições de fazê-lo. Em 378, na Batalha de Andrinopla, tem início à invasão germânica propriamente dita, denominada por Espinosa de “A Primeira Vaga Invasora”.

Quando, no fim do século IV, nas regiões do Mar Negro, os Hunos se precipitaram sobre os godos, desencadeou-se a primeira grande invasão, a qual lançou sobre o Império Romano, ainda intacto, uma avalanche de povos de raças e proveniências variadas (ESPINOSA, 1941, p. 4).


Enquanto o Império estava ocupado em defender-se dos visigodos, uma série de ondas invasoras se iniciava no norte, o que acabaria resultando na queda do Império Romano Ocidente. De acordo com os registros de Espinosa, vagas e vagas bárbaras assolaram o Império Romano do Ocidente. Em 410, Roma foi pela primeira vez saqueada por povos germanos, os Visigodos, chefiados por Alarico, que promoveu uma serie de campanhas militares para conquistar a Península Itálica, logo em seguida os visigodos tomaram a península Ibérica e a região sul da Gália. Em 446, as tribos germânicas dos vândalos, alamanos e suevos, também adentraram o combalido território romano sem que houvesse nenhuma resistência. Os vândalos conquistaram o norte da áfrica, sob o comando Genserico. Os francos conquistaram a porção norte da Gália, Jutos, anglos e saxões promoveram em conjunto a conquista da ilha da Bretanha.
Em se tratando da última questão central deste trabalho, “como se deu a organização dos reinos germânicos no Império Romano?”, percebemos que estes surgiram com a desintegração do Império Romano do Ocidente e não tiveram a mesma importância nem a mesma duração.

Conforme nos apontam os estudos em Riché, no Reino dos Vândalos, povo que atravessou a Europa e se fixou no norte da África, houve perseguição aos cristãos, cujo resultado foi a migração em massa para outros reinos, provocando falta de trabalhadores, e uma diminuição da produção. Enquanto que no Reino dos Ostrogodos, localizado na península Itálica, os povos se esforçaram para salvaguardar o patrimônio artístico-cultural de Roma. Restauraram vários monumentos, para manter viva a memória romana. Conservaram a organização político-administrativa imperial, o Senado, os funcionários públicos romanos e os militares godos. Estes dois reinos, afirma Riché, “têm como características comuns a religião ariana dos príncipes e dos seus povos, a recusa da fusão social e a conservação das instituições antigas.”
O Reino dos Visigodos, situado na península ibérica, era o mais antigo e extenso. Eles ocupavam estrategicamente a ligação entre o Mar Mediterrâneo e o oceano Atlântico, que lhes permitia a supremacia comercial entre a Europa continental e insular. A fusão das duas sociedades, que se opera em meados do século VI, vai permitir a organização de um estado que só a invasão árabe do século VIII destruirá em parte.
Reino dos Anglo-Saxões surgiu em 571, quando os saxões venceram os bretões e consolidaram-se na região da Bretanha. Esses povos desenvolveram uma série de dialetos que, de acordo com a preponderância ou a sujeição dos reinos onde eram falados, influenciaram com maior ou menor força a criação de um idioma comum.
O Reino dos Francos foi o único que conseguiu se estruturar e expandir seus domínios, dos demais reinos germânicos que estava em processo de invasão do Império Romano. Eles ocuparam o norte da Gália. Na formação e expansão do Reino Franco influenciou soberanos de duas dinastias: merovíngia e carolíngia.
Assim, observamos que, em sua maioria, os Reinos foram efêmeros, não possuindo organização administrativa eficiente, apesar do empenho de muitos chefes germanos em manter as instituições político-administrativas romanas. O funcionamento dessas instituições, contudo, nem sempre correspondeu às novas realidades e, por vezes, os elementos de populações romanizadas se recusaram a colaborar com os germanos: durante muito tempo foram vistos como conquistadores que se haviam imposto pela força das armas.
A língua, a religião, os costumes e, sobretudo, as instituições político-jurídicas e sociais dos germanos, bem diferentes dos das populações submetidas, funcionaram como obstáculos à fusão entre as duas sociedades: a romana e a germânica. Ainda que os chefes bárbaros procurassem evitar choque entre romanos e germanos surgiram inúmeros problemas, inclusive pela criação de novos obstáculos à fusão, como a adoção do regime da personalidade das leis, segundo o qual cada indivíduo seria julgado pelas leis de seus ancestrais.
A instabilidade e a curta duração de muitos desses Reinos também se ligaram ao fato de os germanos desconhecerem a noção de Estado. A própria concepção que tinham da Monarquia em nada contribuiu para a consolidação dos Reinos. Concebiam-na como "uma Realeza absoluta apoiada na força militar. Os Reis do povo franco, godo, vândalo etc, não tinham nenhuma idéia de um Estado cuja responsabilidade lhes cabia. Eram proprietários de suas conquistas e as partilhavam entre seus sucessores, em geral seus filhos. A idéia de explorar metodicamente suas riquezas igualmente lhes escapava: viviam em um domínio até o esgotamento das reservas, depois procuravam outros recursos. Sua Corte era integrada pelos fiéis e parentes. A organização familiar permaneceu idêntica após as invasões: compra da esposa, direito paterno de justiça, solidariedade familiar, divórcio excepcionalmente, mas concubinato muito comum, pelo menos entre os Reis.
Finalmente chegamos a um raciocínio mínimo que nos permita compreender que à medida que penetravam na Europa, os bárbaros fundaram diversos reinos, processo conhecido como invasões bárbaras, que foram responsáveis diretas por um intenso intercâmbio cultural que modificou profundamente a formação étnica, política, econômica, lingüística e religiosa do mundo ocidental.  Do mesmo modo, nos permitiu perceber, em vários momentos da historia, que as noções de civilizado e de bárbaro estão envoltas de preconceitos e não só refletem uma visão maniqueísta da sociedade como possuem uma função ideológica, que reforça o discurso dominante.



REFERENCIAS

ESPINOSA, F. Antologia de textos históricos medievais. Lisboa: Editora Sá da Costa, 1981. Cap. I.

LE GOFF, J. A civilização do Ocidente medieval. Lisboa: Estampa, v. 1, 1984. p .27-63.

RICHÉ, Pierre. As invasões bárbaras. Mem Martins: Europa-América, 1992.
TÁCITO. Germânia (98 d.C.). Trad. e notas de Sadi Garibaldi. Rio de Janeiro: Editora Livraria Para Todos, 1943. Essa tradução foi confrontada com CAYO CORNELIO TÁCITO. Obras completas (traducción, introducción y notas. Obra publicada bajo la dirección de VICENTE BLANCO Y GARCÍA). Madrid: M. Aguilar Editor, 1946, p. 1011-1044. Disponível em www.ricardocosta.com


3 comentários:

  1. Um belo matéria para ser usado na universidade. Obrigado em ajudaste baste com um seminário, não tinha encontrado nada sobre os germânicos ainda.

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