Falar da obra “Da Liberdade do Cristão” do Reformista Martinho Lutero exige, necessariamente, que conheçamos um pouco de seu autor, sua obra e em que circunstancias a mesma foi produzida.
Martinho Lutero nasceu em Eisleben, na Alemanha, no ano de 1483. Foi uma criança inteligente e dotada de uma viva sensibilidade. Teve uma formação severa e, em 1505, recebeu o grau de Mestre em Artes pela Universidade de Erfurt, uma das principais universidades alemãs da época e, naquele mesmo ano iniciou o curso de Direito, conforme desejava seu pai, mas logo o deixou, entrando para a ordem dos Agostinianos de Erfurt, após sobreviver aos raios que caíram próximo de si durante uma tempestade. O futuro reformador sofria das angústias existenciais de sua época, como o medo da morte e a incerteza da salvação.
Em 1507, Lutero foi ordenado sacerdote; no ano seguinte começou a lecionar teologia na Universidade de Wittenberg e, em 1512 tornou-se doutor em teologia. Como homem, de elevado intelecto e consideráveis habilidades pessoais foi, por isso, galgando postos eclesiásticos. Seu grande conhecimento bíblico, especialmente seus estudos sobre os escritos de Paulo, que declarara que “o justo viverá pela fé”, fez com que o Agostiniano de Erfurt percebesse claramente os erros da Igreja Católica Romana, chegando a uma nova fé, que enfatizava a graça e a salvação como dons gratuitos de Deus, mediante a fé.
Esta nova fé tornou-se o ponto fundamental de suas preleções. No seu desenvolvimento começou a criticar o domínio da filosofia tomista sobre a teologia romana. Ele estudava os escritos de Agostinho, Anselmo e Bernardo de Claraval, descobrindo nestes, a fé que começava a proclamar. Em 1516, tornou-se pároco da igreja de Wittenberg, e pregador popular, proclamando a sua nova fé.
Ao mesmo tempo em que Lutero chegava àquelas conclusões acerca da fé, pregadores vendiam indulgências na Alemanha para financiar a reconstrução da Basílica de São Pedro, em Roma. Lutero divulgou, então, suas 95 Teses, esclarecendo o engano que era provocado pelas indulgências e se opondo à venda das mesmas, porque as tais eram uma espécie de graça concedida pela Igreja aos seus membros, perdoando total ou parcialmente a pena devida a um pecado; porque, para ele, o homem é justificado, somente pela fé e pela graça divina.
Segundo Lutero, a compra das indulgências ou a obtenção das mesmas de qualquer outra maneira era incapaz de impedir Deus de aplicar suas punições temporais e de intervir na salvação. Lutero foi contrário àquela prática afirmando, ainda, que a mesma se tornara uma fábrica de dinheiro para a Igreja. Em razão disso, o Reformador Alemão acabou por ser excomungado pela Igreja, entre o final do ano de 1520 e o início de 1521, por não se retratar.
Entretanto, em1520, o Mestre de Wittemberg havia publicado uma série de escritos atacando à Igreja, se defendendo da mesma ou se dirigindo à população alemã. Entre esses escritos destaca-se a obra Da Liberdade do Cristão.
Escrita, inicialmente, com o objetivo de apresentar a doutrina bíblica da justificação pela fé ao papa Leão X, Lutero mostra a inteira liberdade do cristão, como sacerdote e rei, sobre todas as coisas exteriores, mas como exigência, um perfeito amor ao próximo. Contudo, o Papa não aceitou os escritos de Lutero, os considerando heréticos. Como conseqüência, Lutero publicou, no mesmo ano, a referida obra em alemão, apresentando-a a toda sociedade. A ideia de liberdade associada à idéia de servidão norteia todo o tratado Da Liberdade do Cristão.
A obra é composta de 30 itens, nos quais o autor ressalta três pontos principais do Cristianismo autêntico: fé, palavra de Deus e obras. São os três pilares que constituem a base da verdadeira vida cristã e o princípio da liberdade que movem o cristão para Deus, por meio de Cristo.
Lutero afirmou logo no início da obra, que “um cristão é um senhor livre sobre todas as coisas e não se submete a ninguém”; mas também, que, “um cristão é um súdito e servidor de todas as coisas e se submete a todos” (Lutero. 1998 p.25). Ele inicia sua explanação citando os textos de 1 Co 9.19 e Rm 13.8, que põem em evidência o paradoxo entre a liberdade e a servidão. Essas citações têm um propósito, seu objetivo é destacar a dupla natureza presente em Cristo e no homem. Cristo, por exemplo, foi simultaneamente livre e servo, uma vez que tinha a forma de Deus (natureza divina) e de servo (natureza humana).
Tais afirmações que, de início, parecem contraditórias, se dão porque, segundo o Reformador Alemão, o homem, assim como Cristo, também possui uma natureza dupla: a espiritual (pessoa interior) e a carnal (pessoa exterior). Tal distinção, diz Lutero, faz com que as escrituras afirmem coisas contraditórias acerca da mesma pessoa.
Explanada a ideia de liberdade associada à idéia de servidão o autor passa a ressaltar os três pontos principais do Cristianismo autêntico: Palavra de Deus, fé e obras, os três pilares que constituem a base da verdadeira vida cristã e o princípio da liberdade que movem o cristão para Deus, por meio de Cristo.
Dessa forma, o próximo passo de Lutero é mostrar que a “pessoa interior” não é afetada por elementos externos. Ele pergunta, por exemplo, se o estado de saúde pode libertar ou conceder justiça a alma, ou ainda se o modo de se vestir ou se portar religiosamente, a exemplo dos sacerdotes, podem conceder justiça e liberdade à alma. “Quando, porém, ela possui a Palavra, de nada mais necessita, pois na Palavra Ela encontrará satisfação, alimento, alegria, paz, luz, ciência, verdade, sabedoria, liberdade e todos os bens e abundancia.” (LUTERO, 1998, p. 27).
Lutero, respondendo às suas próprias perguntas, diz que não! Para ele a única coisa que pode conceder vida, justiça e liberdade cristã é o “sacrossanto verbo de Deus, o Evangelho de Cristo”. A alma pode carecer de qualquer coisa, exceto da palavra de Deus, pois só ela pode conceder virtudes.
Continuando o seu discurso Lutero pergunta agora que Palavra é esta ou de que maneira se deve usá-la? Sua resposta mais uma vez é enfática, bem ao estilo paulino: “O Evangelho de Deus a respeito de seu Filho que se fez carne, sofreu, ressuscitou e foi glorificado pelo Espírito santificador”. (LUTERO, 1998, p. 29)
Por essa razão, Lutero afirma que “o correto seria que a única obra e prática de todos os cristãos fossem formar-se através da Palavra e através de Cristo, praticando e fortalecendo continuamente essa fé” (LUTERO, 1998, p. 29).
Para Lutero o homem não é justificado pelo que faz ou pelas ações que sofre do mundo externo, mas pela fé somente. Sua alma não pode ser influenciada por fatores externos, mas só pela graça divina. Ele lembra que “todos pecaram” (Rm 3.23) e que “não há quem faça o bem” (Rm 3.10) e assim procura mostrar que todos, sem exceção, carecem dessa graça. É nesta pessoa interior que reina a fé, diz Lutero, e como sua justificação não pode ocorrer por obra alguma. A maior preocupação de qualquer cristão deve ser o fortalecimento dessa fé. Através da fé, a palavra de Deus torna a alma sagrada, justa, verdadeira, pacífica, livre e plena de bondade, fazendo dela um verdadeiro filho de Deus.
O autor coloca também que “a fé não somente faz que a alma se torne livre, cheia de graça e bem aventurada, semelhante à Palavra divina, mas também une a alma com Cristo, como uma noiva com seu noivo” (Lutero, 1998, p. 37). Na teologia católica o casamento é um sacramento, e que, portanto, concede graça. Mas Lutero não fala de um casamento entre um homem e uma mulher, mas o casamento entre a alma humana e Cristo. Este sim é o casamento mais perfeito de todos, pois os casamentos humanos são figuras tênues desse matrimônio único. Tal casamento, segundo Lutero, torna os bens da alma comuns aos de Cristo. Assim, os pecados, a morte e o inferno se tornam de Cristo e a graça, a vida e a salvação se tornam do homem, que é liberto de todos os seus pecados.
Lutero retoma a figura do matrimônio para mostrar que aquele que crê em Cristo compartilha do seu sacerdócio e reinado. O reinado torna o fiel senhor de tudo pelo poder espiritual. O sacerdócio o torna digno de comparecer perante Deus, orar pelos outros e ensinar sobre as coisas de Deus. Tudo isso suscita uma pergunta: “que diferença haveria entre os sacerdotes e os leigos na Cristandade, se todos são sacerdotes?” (LUTERO, 1998, p. 45).
Ele enfatiza que as Sagradas Escrituras não fazem tal distinção. Ele entende que essa separação acabou dando poder ao grupo dos sacerdotes, transformando-o numa tirania. Outra conseqüência dessa divisão seria a perda do conhecimento da graça, da fé, da liberdade e de Cristo, dando lugar às obras e leis humanas.
Finalizando a primeira parte do texto, dedicada ao homem interior, Lutero destaca que é preciso pregar com o objetivo de promover a fé em Cristo, explicando o motivo da sua vinda e o que foi trazido e concedido por Ele. Tal pregação teria o poder de alegrar e confortar os corações daqueles que a ouvem. Ele critica os que pregam que o conhecimento da vida, das obras e palavras de Jesus seriam suficientes como exemplo de vida a ser concretizada. Sua crítica também se estende aos que se silenciam totalmente a respeito de Cristo, ensinando em seu lugar leis e decretos humanos. Por fim aos que apelam à emoção dos ouvintes.
Nessa perspectiva, Lutero inicia a segunda parte do texto dedicando-se à pessoa exterior. Diante de sua explanação tão enfática acerca da suficiência da fé e da insuficiência das obras abordadas até o momento, Lutero imagina que uma pergunta poderia surgir: “Ah, se a fé é tudo e vale por si só para tornar justo, por que é que as boas obras foram ordenadas”. (LUTERO, 1998, p. 47)
Ele responde dizendo que “caso fôssemos total e perfeitamente interiores e espirituais de fato seria assim, porém, enquanto vivemos na carne é necessário sermos servos de tudo e a todos sujeito” (1998, p. 47). Se o homem interior é livre, como já foi explicado na primeira parte, o homem exterior é servo.
Para Lutero, a relação entre liberdade e servidão, existe ainda, porque, apesar de o homem ser livre, justificado pela fé, este mesmo homem continua, contudo, com sua vida física sobre a Terra, tendo que governar o seu próprio corpo e conviver com outras pessoas, sendo as obras o meio para essa realização; sobretudo, porque só se pode servir e amar a Deus quando se serve e ama ao próximo, uma vez que “da fé fluem o amor e o prazer em Deus, e do amor flui uma vida livre, animada e feliz, para servir desinteressadamente ao próximo” (LUTERO, 1998, p. 49).
Para explicar a função que ocupa as obras na vida do crente, Lutero utiliza como analogia a vida de Adão e Eva no paraíso. O trabalho que realizavam no jardim (Gn 2.15) não visava à obtenção da justiça, já que ainda não havia pecado. Tais obras eram realizadas unicamente para a glória de Deus. Apenas duas coisas tornam o homem bom ou mau, a fé a e incredulidade. A fé o torna justo e a incredulidade o condena.
Lutero gosta de ilustrações e para mostrar de forma clara que a fé precede as obras, ele explica que uma árvore que produz bons frutos não é saudável por causa dos frutos, mas os frutos é que são bons por causa da árvore. Árvore saudável (justificada por meio da fé) produz bons frutos. Árvore doente (incrédula e, portanto condenada) produz maus frutos. Não importa se os frutos de um incrédulo parecem bons. Seus frutos são maus porque não são para glória de Deus. Ele é da opinião de que quando Jesus disse que “pelos seus frutos os conhecereis” está confirmando aquilo que já foi dito: os frutos são a forma visível de algo que já ocorreu no homem interior (invisível). Lutero destaca ainda outra coisa importante: caso um crente justificado pela fé produza uma obra má isto não faz dele uma pessoa má ou condenada. A única coisa que pode torná-lo mau é a incredulidade. Lutero procura deixar bem claro que não condena as obras. O que ele condena é o ensinamento que afirma que elas concedem justiça.
Lutero também encontra espaço para falar sobre o trabalho. Nesse sentido, ele defendeu as boas obras como forma de mortificar o corpo e condenou o ócio, concedendo também importância ao trabalho como meio de dignificar o homem, de honrar a Deus e, assim, ocupar seu tempo e seu corpo, protegendo-o do mal.
Para ele, “não fazer nada é ruim para a alma, por isso, em certas horas, os irmãos devem se ocupar no trabalho manual e noutras horas na leitura divina”. (Lutero, 1998, p. 51). Mas, de acordo com o ensinamento dos Santos Padres, o trabalho realizado pelo cristão, era uma forma de afugentar o mal: as tentações e os maus pensamentos. Entendo que cada um deveria conservar-se na condição social em que nasceu, até que deixasse a vida mortal e passasse para a vida eterna.
Enquanto o trabalho foi concebido por Lutero, como um instrumento divino para subjugar o corpo ao serviço divino, as obras, para ele, só são válidas mediante a fé, são conseqüência dela, de forma que, o homem bom e justo realiza obras boas e justas.
Segundo a compreensão de Lutero, as boas obras, o servir ao próximo desinteressadamente, são as responsabilidades do cristão para com a vida terrena e, por isso, o faz o cristão servo de todos. O cristão deve como conseqüência da fé, praticar as boas obras e zelar pelos outros, não simplesmente como atos de caridade cristã, como queriam os medievais, mas como atos de solidariedade humana, nascidos na razão.
Lutero defendeu a idéia de que o homem nasce escravo do pecado; é, por natureza, mau e, assim, incapaz de realizar o bem desinteressadamente. Para mudar tal realidade, ele precisa se aproximar de Deus e reconhecer suas fraquezas, sua natureza má e sua conseqüente incapacidade para o bem e para o cumprimento dos mandamentos. Ao reconhecer tais coisas e se humilhar diante de Deus, por meio da graça, passa a crer em Deus e assim, atinge a fé e a salvação em Cristo, conseqüentemente, a verdadeira liberdade.
Ele defendeu também, a liberdade de consciência, com a intenção de orientar as pessoas nas suas ações diárias, para que no desenvolvimento de sua fé, e, portanto de sua consciência, tomassem as decisões que considerassem compatíveis com o exercício dessa fé, isto é, com a vontade de Deus. Nesse sentido, ele defendeu que cada pessoa deveria agir com base na sua própria consciência, sendo responsável, neste mundo e diante de Deus, por suas decisões individuais. Para o Reformador, nosso valor é atribuído por Deus e não depende de elementos externos, de nossos feitos e realizações.
Lutero finaliza o texto dizendo que as obras e as cerimônias não devem ser desprezadas, mas procuradas ao máximo. No entanto, o que deve ser desprezado são as falsas idéias das obras, ou seja, a idéia de que a justificação deve ser conquistada por elas.
Diante do exposto, concluímos que é possível afirmar que Lutero concebeu seu pensamento acerca da idéia de liberdade a partir da tradição cultural cristã, especialmente nos escritos de Paulo e de Santo Agostinho, que fundamentam toda sua abordagem. Assim, ele contribui para o nascimento de um cristianismo moderno, respondendo aos anseios de seus contemporâneos, bem como de seus posteriores; sendo seu pensamento “moderno” para o momento em que escreveu e de grande influência tanto para o mundo religioso quanto para o secular. E, que, apesar das limitações de seu pensamento que são também as limitações sócio-culturais de sua época, Lutero contribuiu com a mesma, provocando lhe mudanças. Sua doutrina da justificação pela fé e sua defesa da liberdade, responderam aos anseios e necessidades do período, oferecendo ainda, elementos para se pensar aquela nova sociedade que emergia. Suas idéias, sobretudo do ponto de vista religioso, já foram discutidas, aceitas por uns e combatidas por outros, mas continuam a oferecer material para discussão, na atualidade, principalmente no que tange às suas contribuições para o mundo religioso; sendo pouco investigadas as suas contribuições, para o mundo moderno.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
LUTERO, Martinho. Da Liberdade do Cristão (1520). Trad. Erlon José Paschoal. São Paulo: Fundação Editora da UNESP. 1998.
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