Carlo Ginzburg é um renomado Historiador e Antropólogo italiano. Nascido no dia 15 de abril de 1939 na cidade de Turim, Itália e filho do tradutor Leone Ginzburg com a romancista Natalia Ginzburg. Foi aluno da Escola Normal Superior de Pisa em Roma e do Instituto Warburg na Inglaterra. Formou-se em História e passou a lecionar na Universidade de Bolonha, na Itália. Mas logo se mudou para a América onde passou a lecionar nas universidades de Harvard, Yale, Princeton e da Califórnia.
É membro honorário da Academia Americana de Artes e Ciências e colaborador de importantes revistas das Ciências Humanas, tais como: Past and Present, Annales e Quaderni Storici. Está entre os intelectuais mais notáveis da Itália e seus livros já foram traduzidos para 15 línguas. Publicou diversos livros: Os Andarilhos do Bem (1966), História Noturna (1991), Mitos, Emblemas e Sinais (1989) e Olhos de Madeira (2001). Entretanto o grande sucesso, que o tornou mundialmente conhecido, foi O Queijo e os Vermes.
Esta é, sem dúvida, a principal obra de Carlo Ginzburg, datada de 1976 que narra o cotidiano, a vida e o julgamento inquisitorial de um moleiro de Montereale, zona italiana do Friuli. Domenico Scandella, conhecido por Menocchio, que foi perseguido pela Inquisição por disseminar suas idéias heréticas ao povo de sua aldeia. Não se trata apenas de um relato incomum para a época, que não acontecia habitualmente nem de algum personagem bizarro, embora Menocchio seja também peculiar.
Ainda nos Prefácios à Edição Inglesa e Italiana, o autor revela o contexto em que a obra foi produzida. Na década de 1960, mais precisamente no ano de 1962, Ginzburg realizava uma pesquisa em um arquivo da Cúria Episcopal de Udine na Itália. E se deparou com um arquivo que guardava uma extensa documentação sobre processos da Inquisição e registros antigos, sobretudo do século XVI, que por curiosidade ele veio a anotar o número. Tratava-se do processo de um moleiro chamado Domenico de Scandella, que afirmava que a vida surgiu da “putrefação”.
Ginzburg procurava outros arquivos sobre seitas heréticas e bruxaria para uma pesquisa que daria forma ao que veio ser um primeiro livro, considerado ainda hoje por ele seu estudo mais inovador. I benandant - Os andarilhos do bem, - título brasileiro, publicado em 1966, que contava a história dos benandanti, grupo de friulanos que acreditava defender as colheitas do mau olhado feiticeiro.
Como afirma o próprio Ginzburg (2006, p. 9), “nos anos que se seguiram, essa anotação ressaltava periodicamente de meus papéis e se fazia presente em minha memória”. Assim, o pesquisador iniciou em 1970 a pesquisa sobre a vida desse personagem, até então, anônimo da História.
Ginzburg, afirma ainda, que, as condições materiais que credenciaram o resgate de um personagem como Menocchio haviam se dado, por um lado, pela “invenção da imprensa” que tornou possível às mãos de um simples moleiro “confrontar os livros com a tradição oral em que havia crescido e Ihe forneceu as palavras para organizar o amontoado de idéias e fantasias que nele conviviam” e por outro, pela “Reforma que Ihe deu audácia para comunicar o que pensava ao padre do vilarejo, conterrâneos e inquisidores, mesmo não tendo conseguido dizer tudo diante do papa, dos cardeais e dos príncipes, como queria” (2006, p.25).
Mennochio nasceu em 1532, em Montereale, uma pequena aldeia nas colinas do Friuli. Era casado e tinha sete filhos. Moleiro de profissão, respeitado na comunidade, autodidata, alfabetizado, tinha uma vida normal como cidadão de Montereale, dedicado à suas atividades de sustento da família, até ser chamado ao Tribunal do Santo Ofício, em 1583 sob a acusação de ter pronunciado palavras “heréticas e totalmente ímpias” sobre Cristo.
Em um de seus depoimentos, quando perguntado sobre o que fazia, ele disse (2006, p. 31), “[...] que sua atividade era de moleiro, carpinteiro, marceneiro, pedreiro e outras coisas”. Durante certo período, foi designado como magistrado da aldeia e dos povoados ao redor de Montereale. Essa função pública era designada a cidadãos que possuíssem algum estudo. Àquela época existiam escolas públicas, mas não em Montereale. Presume-se que ele tenha passado pelas escolas das cidades de Pordeone e Aviano. Assim, podemos verificar que Menocchio possuía a capacidade de ler, escrever e contar, o que lhe dava algum destaque no povoado onde vivia.
Menocchio dizia não acreditar que o Espírito Santo governasse a Igreja, acrescentando: "Os padres nos querem debaixo de seus pés e fazem de tudo para nos manter quietos, mas eles ficam sempre bem", e ele "conhecia Deus melhor do que eles" (2006, p.32). Fazia estranhas afirmações que os conterrâneos relatavam de maneira fragmentada, desconexa, ao vigário-geral: “O que é que vocês pensam que Jesus Cristo nasceu da virgem Maria? Não é possível que ela tenha dado à luz e tenha continuado virgem. Pode muito bem ser que ele tenha sido um homem qualquer de bem, ou filho de algum homem de bem” (2006, p. 35).
O personagem fundamenta grande parte de suas críticas em cima da Igreja e dos padres. Ele afirma que a virgindade de Maria foi forjada, assim como a Criação do mundo por Deus, a crucificação de Jesus, os Evangelhos, a adoração de imagens, os sacramentos, o inferno e diversos outros pontos base dos dogmas católicos. Ele criticava, além da religião, o poder dos ricos que se escondiam atrás da língua latina com a cumplicidade da Igreja Católica Apostólica Romana, igualmente proprietária de terras e exploradora.
Assim, diante dos diversos testemunhos que se acumulavam contra as heresias de Menocchio, o mesmo foi aconselhado a se apresentar espontaneamente ao Santo Ofício e admitir a sua culpa, declarando que não acreditava em suas próprias afirmações heréticas. Desse modo, Menocchio o fez, mas dado o andamento do inquérito, o inquisidor Felice da Montefalco ordenou a prisão dele e o mesmo foi submetido em 7 de fevereiro de 1548 a um primeiro interrogatório. Durante o interrogatório, quando questionado sobre suas blasfêmias acerca dos dogmas da igreja e sua singularíssima cosmogonia, disse:
Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos [...] e de todo aquele volume e movimento se formou uma massa, do mesmo modo o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos. A santíssima majestade quis que aquilo fosse Deus e os outros, anjos, e entre todos aqueles anjos estava Deus, ele também criado daquela massa, naquele mesmo momento (Ginzburg, 2006, p. 36-37).
Esse trecho em particular, chama a atenção pela cosmogonia proferida pelo personagem. Ele explicava sua cosmogonia tranquilamente, com segurança, aos inquisidores estupefatos e curiosos. Apesar da grande variedade de termos teológicos, um ponto permanecia constante: a recusa em atribuir a divindade à criação do mundo e, ao mesmo tempo, a obstinada reafirmação do elemento aparentemente muito bizarro: O queijo, os vermes- anjos nascidos do queijo. Alegando, no entanto, a originalidade de suas idéias.
Segundo o autor, Menocchio era conscientemente orgulhoso da originalidade de suas idéias e, por isso, desejava expô-las as mais altas autoridades civis e religiosas. Ao mesmo tempo, porem, sentia necessidade de dominar a cultura dos seus adversários. Compreendia que a escritura e a capacidade de dominar e transmitir a cultura escrita eram fontes de poder. Não se limitou, portanto, a denunciar a "traição dos pobres" peIo uso de uma língua burocrática (e sacerdotal) como o latim.
Menocchio teve acesso a uma grande quantidade de títulos que acabaram por forjar e fomentar a sua bagagem discursiva, ajudando a compor as suas próprias idéias. O moleiro articulava seus próprios pensamentos, alimentado pela cultura escrita e oral de sua época.
Ele estava se contrapondo a um dos pilares da religião católica: o criacionismo. Deus sempre existiu antes mesmo de todas as coisas; criou todas as coisas e não foi criado, pois sempre existiu. Deus é eterno, portanto, não teve início e não terá fim. Quando ele diz que tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, questionou a eternidade de Deus e a interpretação das Sagradas Escrituras. “Deus também teria sido criado desse Caos?” Essa pergunta apareceria na boca do inquisidor logo em seguida. Afinal, era isso que estava implícito na fala de Menocchio. Além disso, esta fala poderia ter sido uma influência sofrida de alguma obra. Quando perguntado de onde Menocchio tinha tirado aquelas idéias, ele respondeu: “[...] li isso no Fioretto della Bibbia, mas as outras coisas que eu disso sobre o Caos eu tirei da minha própria cabeça.” (Ginzburg, 2006, cap. 25, p. 95)
Diante desse dilema quase incompreensível, é pertinente considerar que, boa parte das idéias expostas por Menocchio, tenha surgido em meio à cultura oral. Assim, voltamos a dois fatores históricos, já citados anteriormente, e que contribuíram para o surgimento de tais idéias: a Reforma religiosa e a difusão da imprensa. O fenômeno da imprensa foi primordial para a formação da bagagem discursiva do moleiro. A grande maioria dos termos utilizados por Menocchio pode ser associada ao Fioretto della Bibbia. Essa obra forneceu os elementos lingüísticos e culturais que permitiram ao moleiro a sua elaboração teórica sobre a origem do mundo.
Ginzburg (2006, cap. 29, p. 107), nos mostra que no Fioretto, capítulo XXVI, há uma passagem sobre a criação:
Muitos filósofos foram enganados e incorreram em grandes erros sobre a criação das almas. Alguns disseram que as almas são feitas eternamente. Outros dizem que todas as almas são uma e que os elementos são cinco, os quatro citados acima e ainda um outro, chamado’ orbis’, e dizem que desse ‘orbis’ Deus fez a alma de Adão e todas as outras. E por isso dizem que o mundo não acabara jamais, porque, quando o homem morre, retorna aos seus elementos.
Assim, verificamos na cosmogonia de Menocchio algo que não é bem explicado e claro. Essa confusão deriva da cultura oral e da apropriação do discurso. No caso de Deus, o moleiro é bem confuso. Para ele, Deus é um pai. “[...] Deus é um pai para os homens: todos somos filhos de Deus, da mesma natureza que o do que foi crucificado. Todos: cristãos, heréticos, turcos, judeus [..]” (Ginzburg, 2002, cap. 31, p. 117). Em outros momentos, Menocchio faz alusão a Deus, distinto da Santíssima majestade; por outras vezes, identifica-a com o espírito de Deus; compara Deus a um grande capitão que enviou um representante junto aos homens, seu filho. Ele sempre pediu perdão, não negava suas idéias, no máximo dizia que era "coisa do diabo", e nunca dizia que conhecia pessoas com os mesmos ideais que os seus. Assim, conseguiu ser absolvido e condenado a não se afastar da cidade de Montereale, além de usar um hábito com a cruz sobre a roupa como sinal de sua blasfêmia e heresia.
Embora tenha sido julgado e condenado pela Santa Inquisição, Menocchio continuara tendo prestígio na comunidade, sendo inclusive, renomeado administrador da Paróquia de Montereale, apesar do seu isolamento. Entretanto, o moleiro não conseguia deixar de falar e pensar as suas “teorias” e blasfêmias. Algo nele parecia ser mais forte do que o temor pela sua vida. A partir desse momento, as suas “heresias” não só eram sabidas somente pelo povo de Montereale. Sua fama atingia outras cidades: “Vocês pensam que Cristo nosso senhor era filho da virgem Maria, mas como, se essa virgem Maria era uma puta? Como é que vocês querem que Cristo tenha sido concebido pelo espírito santo se ele nasceu de uma puta?”. (Ginzburg, 2006, cap. 51, p. 159).
A continuidade na pregação de suas idéias heréticas acabou gerando um segundo julgamento para Menocchio, que em 1599 acabou mais uma vez condenado, torturado e morto na fogueira.
Um grande problema encontrado pelos inquisidores foi em que heresias classificarem o pensamento de Menocchio. Primeiro Ginzburg pensou nele como um luterano, depois como um encratista ou um anabatista, mas pode-se chama-lo de pertencente a "um ramo autônomo do radicalismo camponês (...) muito mais antigo do que a Reforma" (2006, p. 70).
A Igreja combatia neste momento uma ideologia pré-Contra-Reforma erudita ao lado de uma cultura popular semi-pagã, o que colocou os bispos em uma situação incômoda, pois eles não conseguiam relacionar as idéias de Menocchio com nenhum esquema herético pré-definido. Os inquisidores interpretavam as crenças que eles não conheciam dentro de um código fixo diferente e, para eles, mais claro, cheio de estereótipos.
Assim, podemos identificar no trabalho de Ginzburg, algumas obras citadas por Menocchio nos processos e que podem elucidar a questão de como surgiram tais influências na memória do moleiro. No primeiro processo (1584) foram citados os seguintes livros:
- Bíblia (em latim vulgar);
- ll fioreto della bibbia (tradução de uma crônica medieval catalã);
- Il lucidario della Madonna (do dominicano Alberto da Castello);
- il lucendario de Santi (de Jacopo de Varigine);
- Historia de Giudicio ( pequeno poema anônimo);
- Il cavallier Zuanne de mandavilla (livro de viagem de Sir John Mandeville);
- Il Sogno dil Caravia (edição de Veneza datada de 1541);
Ginzburg conseguiu levantar também, o mapeamento dos livros que foram citados por Menocchio no segundo processo (1599):
- Il supplimento delle Cronache (de Jacopo Filippo Foresti);
- lunario ao modo di Italia calculato composto nella città di Pesaro dal Eccmo dottore Marino Camilo de Leonardis;
- Decameron (Boccaccio – versão não censurada);
- Alcorão (em 1547, sai em Veneza uma tradução italiana.).
As obras acima citadas constam nos autos do processo como livros que Menocchio teria se referido. Além disso, o moleiro teve acesso à cultura oral de seu tempo e às leituras em voz alta para muitas pessoas.
Outro lugar social de difusão de idéias eram os moinhos. Nesse local as pessoas se encontravam e discutiam sobre vários assuntos. Foi principalmente no seu moinho que Menocchio difundiu suas reflexões e discutiu como os seus vizinhos e amigos. Aliás, é em função dessas discussões que as suas “heresias” acabaram por levá-lo aos dois julgamentos.
Destes livros, um único fora comprado, alguns presenteados e outros emprestados. Como bem mencionou Ginzburg “numa aldeia tão pequena como Montereale, tais dados são significativos e apontam para uma rede de leitores que superam os obstáculos dos recursos financeiros exíguos, passando livros de mão em Mao” (2006, p. 68).
Vimos que Ginzburg desbravou os processos de Menocchio procurando desvendar os prováveis, ou improváveis, caminhos assumidos pela interpretação peculiar dos textos lidos, capazes de ensejar a elaboração da fantástica tese do queijo e dos vermes.
Ginzburg analisa o processo inquisitório, partindo da vida cotidiana desse moleiro nos campos italianos do século XVI, em luta contra o avanço protestante, até chegar aos pensamentos específicos deste interessante personagem. Sua análise deu corpo a uma profunda reflexão sobre a escrita da história, suas dificuldades, desafios e possibilidades. Ele faz um estudo da história cultural e das mentalidades, numa prática de micro-história, que revela as classes subalternas e acaba desenrolando numa hipótese geral sobre a cultura popular, na qual o autor trata da influência mútua entre as culturas popular e erudita.
Segundo sua análise, aqueles exóticos relatos quando do primeiro e segundo interrogatórios, revelavam o conflito entre duas culturas que ainda habitavam, naquele período: A cultura dos inquisidores, erudita, de saber clerical, e a cultura de Menocchio, popular, com raízes em remotas tradições camponesas, que dava uma interpretação amplamente não canônica à origem católica do mundo.
É, portanto, no cruzamento entre a micro-história de nosso moleiro e a macro-história das Reformas e das transformações que marcaram a Época Moderna que podemos entender a “produção” de um personagem como Menocchio. Domenico Scandella encarnou a dinâmica da circularidade cultural, tendo acesso a livros produzidos pela cultura letrada e adaptando suas leituras às vivências cotidianas de uma comunidade camponesa.
Finalmente, compreendemos “o queijo e o os vermes” como sendo uma obra historiográfica que se insere no contexto de uma Nova História Cultural que busca resgatar a voz de Menocchio, um mártir da Inquisição que poderia ter passado em branco para a história, a fim de identificar a cultura popular à época do Renascimento e da Contra Reforma Católica. Enfim, a história cultural tal como concebida por Carlo Ginzburg, que se interessa pelo detalhe e pelo contexto, pelas micro e pelas macro-questões que, articuladas, podem nos aproximar um pouco mais de nossos antepassados.
BIBLIOGRAFIA
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes - o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Tradução Maria Betânia Amoroso - São Paulo, Cia. das Letras, 2006.
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