domingo, 8 de maio de 2011

Um Discurso sobre as Ciências

FICHAMENTO DE TEXTO


SANTOS, Boaventura de Sousa. Um Dircurso sobre as Ciencias. 7ª ed. Edições Afrontamento – Porto, 1995.

1.Ao analisar a situação presente das ciências no seu conjunto, olhando para o passado, a primeira imagem é a de que os progressos científicos dos últimos trinta anos são de tal ordem dramáticos que os séculos que nos precederam não são mais que uma pré-história longínqua.
1.1 Os grandes cientistas que estabeleceram e mapearam o campo teórico em que ainda hoje nos movemos viveram ou trabalharam entre o século XVIII e os primeiros vinte anos do século XX:
• De Adam Smith e Ricardo a Lavoisier e Darwin
• De Marx e Durkheim a Max Weber e Pareto
• De Humboldt e Planck a Poincaré e Einstein
1.2 Em termos científicos vivemos ainda no século XIX e o século XX ainda não começou, nem talvez comece antes de terminar.
1.3 Centrando o olhar no futuro, duas imagens contraditórias nos ocorrem alternadamente:
• As potencialidades da tradução tecnológica dos conhecimentos acumulados fazem-nos crer no limiar de uma sociedade de comunicação e interativa libertada das carências e inseguranças;
• Uma reflexão cada vez mais aprofundada sobre os limites do rigor científico combinada com os perigos cada vez mais verossímeis da catástrofe ecológica ou da guerra nuclear.

2.Teoria sinergética do físico Hermann Haken – vivemos num sistema visual muito instável em que a mínima flutuação da nossa percepção visual provoca rupturas no sistema do que vemos.
2.1 A complexidade da situação do tempo presente, um tempo de transição, sincrone com muita coisa que está além ou aquém dele, mas descompassado em relação a tudo o que habita.
2.2 É necessário voltar às coisas simples, à capacidade de formular perguntas simples que são capazes de trazer uma nova luz à nossa perplexidade.

3 Jean-Jacques Rousseau: o progresso das ciências e das artes contribuirá para purificar ou corromper os nossos costumes?
3.1Há alguma relação entre a ciência e a virtude?
3.2 Há alguma razão de peso para substituir o conhecimento vulgar que temos da natureza e da vida e que partilhamos com os homens e com as mulheres da nossa sociedade pelo conhecimento científico produzido por poucos e inacessível à maioria?
3.3 Contribuirá a ciência para diminuir o fosso crescente na nossa sociedade entre o que se é e o que se apresenta ser, o saber dizer e o saber fazer, entre a teoria e a prática?

4.Meados do século XVIII – fase de transição entre a ciência moderna e a ordem científica emergente.
4.1 Urgências de dar respostas as perguntas simples, elementares, inteligíveis.
4.2 É necessário um esforço de desvendamento conduzido sobre um fio condutor de navalha entre a lucidez e a ininteligibilidade da resposta.
4.3 Hipóteses de trabalho, balizadoras do percurso analítico:
• Deixar de fazer sentido a distinção entre ciências naturais e ciências sociais;
• A síntese que há que operar entre elas tem como pólo catalisador as ciências sociais;
• As ciências sócias terão de recusar todas as formas de positivismo lógico ou empírico ou de mecanismos materialistas ou idealistas com a conseqüente revalorização dos estudos humanísticos;
• Esta síntese visa um conjunto de galerias temáticas onde convergem objetos teóricos estanques;
• A distinção hierárquica entre conhecimento científico e conhecimento vulgar tenderá a desaparecer e a prática será o fazer e o dizer da filosofia da prática.

5.O paradigma dominante
5.1 O modelo de racionalidade que preside à ciência moderna é o chamado modelo global, a nova racionalidade científica:
• Que admite variedade interna, mas que se distingue e defende, por via de fronteiras ostensivas e ostensivamente policiadas de duas formas de conhecimento não científico, potencialmente perturbadoras e intrusas: o senso comum e as chamadas humanidades;
• É também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pela suas regras metodológicas;
• Está consubstanciada, com crescente definição, na teoria heliocêntrica do movimento dos planetas de Copérnico, nas leis de Kleper sobre as órbitas dos planetas, nas leis de Galileu sobre a queda dos corpos, na grande síntese da ordem cósmica de Newton e finalmente na consciência filosófica que lhe confere Bacon e Descartes.

6.Essa nova visão da vida e do mundo reduz-se a duas distinções fundamentais, entre o conhecimento científico e o conhecimento do senso comum, por um lado, e entre natureza e pessoa humana por outro.
6.1 Ao contrario da ciência aristotélica, a ciência moderna desconfia sistematicamente das evidencias da nossa experiência imediata. Tais evidencias estão na base do conhecimento vulgar, são ilusórias.6.2 A natureza é tão só extensão e movimento; é passiva, eterna e reversível, mecanismo cujos elementos se podem desmontar e depois relacionar sob a forma de leis.
6.2 Com base nesses pressupostos o conhecimento científico avança pela observação descomprometida e livre, sistemática e tanto quanto possível rigorosa dos fenômenos naturais.
6.3 As idéias que presidem à observação e à experimentação são as idéias claras e simples a partir das quais se pode ascender a um conhecimento mais profundo e rigoroso da natureza.
6.4 A matemática fornece à ciência moderna, não só o instrumento privilegiado de análise, como também a lógica da investigação, como ainda o modelo de representação da própria estrutura da matéria:
• Em primeiro lugar conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo rigor das medições. O que não é quantificável é cientificamente irrelevante;
• O método científico assenta na redução da complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não o pode compreender completamente. Conhecer significa dividir e classificar para depois determinar relações sistemáticas entre o que se separou.

7.A natureza teórica do conhecimento científico decorre dos pressupostos epistemológicos e das regras metodológicas já referidas.
7.1 A descoberta das leis da natureza se assenta, por um lado, no isolamento das condições iniciais relevantes, e, por outro lado, no pressuposto de que o resultado se produzirá independentemente do lugar e do tempo em que se realizaram as condições iniciais.
7.2 As leis da ciência moderna são um tipo de causa formal que privilegia o como funciona as coisas em detrimento de qual o agente ou qual o fim das coisas. É por essa via que o conhecimento científico sempre rompe com o senso comum.
7.3 Tal visão de mundo tenha vindo a constituir um dos pilares da idéia de progresso que ganha corpo no pensamento europeu a partir do século XVIII e que é o grande sinal intelectual da ascensão da burguesia.

8.Tal como foi possível descobrir as leis da natureza, seria igualmente possível descobrir as leis da sociedade:
• Bacon afirma a plasticidade da natureza humana e, portanto, sua perfectibilidade, dadas as condições sociais, jurídicas e políticas adequadas, condições que é possível determinar com rigor;
• Vico sugere a existência de leis que governam deterministicamente à evolução das sociedades e tornam possível prever os resultados das ações coletivas e tornam possível prever os resultados das ações coletivas.
8.1 No século XVIII esse espírito precursor é ampliado e aprofundado e o fermento intelectual que daí resulta, as luzes, vai criar as condições para a emergência das ciências sociais no século XIX.
8.2 A consciência filosófica da ciência moderna, que tivera no racionalismo cartesiano e no empirismo baconiano as suas primeiras formulações, veio a condensar-se no positivismo oitocentista.
8.3 Duas vertentes principais distinguem o modelo mecanicista:
• A primeira constitui em aplicar, na medida do possível, ao estudo da sociedade de todos os princípios epistemológicos e metodológicos que presidiam ao estudo da natureza desde o século XVI;
• A segunda, durante muito tempo marginal, mas hoje cada vez mais seguida, consistiu em reivindicar para as ciências sociais o estatuto epistemológico e metodológico próprio, com base na especificidade do ser humano e sua distinção polar em relação à natureza.
8.4 Para estudar os fenômenos sociais como se fossem fenômenos naturais, como pretendia Durkheim, é necessário reduzir os fatos sociais às suas dimensões externas, observáveis e mensuráveis.
8.5 As ciências sociais tem um longo caminho a percorrer no sentido de se compatibilizarem com os critérios de cientificidade das ciências naturais.
8.6 As ciências sociais não são objetivas porque o cientista social não pode libertar-se, no ato de observações, dos valores que informam a sua prática em geral e, portanto, também a sua prática de cientista.
8.7 A idéia de atraso das ciências sociais é a idéia central da argumentação metodológica nesta variante, e, com ela, a idéia de que esse atraso, com tempo e dinheiro, poderá vir a ser reduzido ou mesmo eliminado.
8.8 Enquanto nas ciências naturais, o desenvolvimento do conhecimento tornou possível a formulação de um conjunto de princípios e de teorias sobre as estruturas da matéria que são aceites sem discussão por toda a comunidade científica, conjunto esse que designa por paradigma, nas ciências sociais não há consenso paradigmático, pelo que o debate, tendo que atravessar verticalmente toda a espessura do conhecimento adquirido.
8.9 O comportamento humano, ao contrário dos fenômenos naturais, não pode ser descrito e muito menos explicado com base nas suas características exteriores e objetiváveis, uma vez que o mesmo ato externo pode corresponder a sentidos de ação muito diferentes.

9.A crise do paradigma dominante
9.1 O modelo de racionalidade científica passa por uma profunda e irreversível crise.
9.2 A crise do paradigma dominante é o resultado interativo de uma pluralidade de condições sociais e teóricas.
9.3 Uns dos pensamentos mais profundos de Einstein é o da relatividade da simultaneidade. Ele distingue entre a simultaneidade de acontecimentos presentes no mesmo lugar e a simultaneidade de acontecimentos distantes, em particular de acontecimentos separados por distancias astronômicas. O primeiro rombo no paradigma da ciência moderna.
9.4 Não havendo simultaneidade universal, o tempo e o espaço absolutos de Newton deixam de existir.
9.5 O caráter local das medições, e, portanto, do rigor do conhecimento que com base neles se obtém, vai inspirar o surgimento da segunda condição teórica da crise do paradigma dominante, a mecânica quântica.
9.6 Heisenberg e Bohr demonstram que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem o alterar, e a tal ponto que o objeto que sai de um processo de medição não é o mesmo que lá entrou.
9.7 O rigor da medição posto em causa pela mecânica quântica será ainda mais profundamente abalado se questionar o rigor do veículo formal em que a medição é expressa, ou seja, o rigor da matemática. É isso o que sucede com as investigações de Gödel e que por essa razão considero serem a terceira condição da crise do paradigma.
9.8 Se as leis da natureza fundamentam o seu rigor no rigor das formalizações matemáticas em que se expressam, as investigações de Gödel vem demonstrar que o rigor da matemática carece ele próprio de fundamento.
9.9 A quarta condição teórica da crise do paradigma newtoniano é constituída pelos avanços do conhecimento nos domínios da microfísica, da química e da biologia nos últimos vinte anos.

10. A teoria de Prigogine recupera inclusivamente conceitos aristotélicos tais como os conceitos de potencialidades e virtualidade que a revolução científica do século XVI parecia ter atirado definitivamente para o lixo da história.
10.1Depois da euforia cientista XIX e da conseqüente aversão à reflexão filosófica, bem simbolizada pelo positivismo, chegamos a finais do século XX possuídos pelo desejo quase desesperado de complementarmos o conhecimento das coisas.
10.2 A análise das condições sociais, dos contextos culturais, dos modelos organizacionais da investigação científica, antes acantonada no campo separado e estanque da sociologia da ciência, passou a ocupar papel de relevo na reflexão epistemológica.
10.3 São questionados os conceitos de lei e o conceito de causalidade que lhe está associado:
• A noção de lei tem vindo a ser parcial e sucessivamente substituída pelas noções de sistema, de estrutura, de modelo e, por ultimo, pela noção de processo.
• A relativização do conceito de causa parte do reconhecimento de que o lugar central que ele tem ocupado na ciência moderna se explica menos por razões ontológicas ou metodológicas do que por razões pragmáticas.
• O causalismo, enquanto categoria de inteligibilidade do real tem vindo a perder terreno em favor do finalismo.
10.4 O rigor científico porque fundado no rigor matemático, é um rigor que quantifica e que, ao quantificar, desqualificar, um rigor que, ao objetivar os fenômenos, os objetualiza e os degrada, que ao caracterizar os fenômenos, os caracteriza.
10.5 A precisão é limitada porque, se é verdade que o conhecimento só sabe avançar pela via da progressiva parcelização do objeto, bem representada nas crescentes especializações da ciência, é exatamente por essa via que melhor se confirma a irredutibilidade das totalidades orgânicas ou inorgânicas às partes que as constituem e, portanto, o caráter distorcivo do conhecimento centrado na observação destas últimas.
10.6 As idéias da autonomia da ciência e do desinteresse do conhecimento científico, que durante muito tempo constituíram a ideologia espontânea dos cientistas colapsaram perante o fenômeno global da industrialização da ciência a partir sobretudo das décadas de trinta e quarenta.
10.7 A industrialização da ciência acarretou o compromisso desta com os centros de poder econômico, social e político, os quais passaram a ter um papel decisivo na definição das prioridades científicas.
10.8 Pautadas pelas condições teóricas e sociais a crise do paradigma da ciência moderna não constitui um pântano cinzento de ceticismo ou irracionalismo, é antes o retrato de uma família intelectual numerosa e isntavel, mas também criativa e fascinante.
10.9 A caracterização da crise paradigmática dominante traz consigo o perfil do paradigma emergente.

11.A natureza da revolução científica que ocorreu numa sociedade ela própria revolucionada pela ciência, o paradigma a emergir dela não pode ser apenas um paradigma científico, tem de ser também um paradigma social.
11.2 A distinção dicotômica entre ciências naturais e ciências sociais deixou de ter sentido e utilidade, e se assenta numa concepção mecanicista da matéria e da natureza a que contrapõe, com pressuposta evidencia, os conceitos de ser humano, cultura e sociedade.
11.3 E quer num quer noutro reconhecem-se propriedades e comportamentos antes considerados específicos dos seres humanos e das relações sociais.
11.4 Todas essas teorias introduzem na matéria os conceitos de historicidade e de processo, de liberdade, de autodeterminação e até de consciência que antes o homem e a mulher tinham reservado para si.
11.5 O inanimado não era uma qualidade diferente mas apenas um caso limite, que a distinção corpo/alma deixará de ter sentido e que a física e a psicologia acabariam por se fundir numa única ciência.
11.6 Convergentemente assiste-se a um renovado interesse pelo “inconsciente coletivo”, imanente à humanidade no seu todo, de Jung.
11.7 Capra ver em Jung uma das alternativas teóricas às concepções mecanicistas de Freud e Bateson afirma que enquanto Freud ampliou o conceito de mente para dentro é necessário agora ampliá-lo para fora.
11.8 São antes duas projeções, mutuamente envolventes, de uma realidade mais alta que não é nem matéria nem consciência. O conhecimento do paradigma emergente tende assim a ser um conhecimento não dualista, um conhecimento que se funda na superação das distinções tão familiares e óbvias que até há pouco considerávamos insubstituíveis, tais como natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjetivo/objetivo, coletivo/individual, animal/pessoa.
11.9 Num período de transição entre paradigmas, seja particularmente importante, do ponto de vista epistemológico, observar o que se passa nessas ciências.

12.A emergência de um novo naturalismo centrado no privilegiamento dos pressupostos biológicos do comportamento humano.
12.1 Numa reflexão mais profunda, atentaremos no conteúdo teórico das ciências que mais tem progredido no conhecimento da matéria, verificamos que a emergente inteligibilidade da natureza é presidida por conceitos, teorias, metáforas e analogias das ciências sociais.
12.2 Os conceitos de teleomorfismo, autopoesis, auto-organizaçao, potencialidade organizada, originalidade, individualidade, historicidade atribuem à natureza um comportamento humano.

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